Machado de Assis
Machado de Assis (Joaquim Maria
M. de A.), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo,
nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio
de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da Cadeira nº. 23 da
Academia Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que
morrera cerca de vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado
escolhesse o nome do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou por
mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de
Casa de Machado de Assis.
Filho do operário Francisco José de Assis e de
Maria Leopoldina Machado de Assis, perdeu a mãe muito cedo, pouco mais se
conhecendo de sua infância e início da adolescência. Foi criado no morro do
Livramento. Sem meios para cursos regulares, estudou como pôde e, em 1854,
com 15 anos incompletos, publicou o primeiro trabalho literário, o soneto
"À Ilma. Sra. D.P.J.A.", no Periódico dos Pobres,
número datado de 3 de outubro de 1854. Em 1856, entrou para a Imprensa
Nacional, como aprendiz de tipógrafo, e lá conheceu Manuel Antônio de Almeida,
que se tornou seu protetor. Em 1858, era revisor e colaborador no Correio
Mercantil e, em 60, a
convite de Quintino Bocaiúva, passou a pertencer à redação do Diário do Rio
de Janeiro. Escrevia regularmente também para a revista O Espelho,
onde estreou como crítico teatral, a Semana Ilustrada e o Jornal
das Famílias, no qual publicou de preferência contos.
O primeiro livro publicado por Machado
de Assis foi a tradução de Queda que as mulheres têm para os tolos (1861),
impresso na tipografia de Paula Brito. Em 1862, era censor teatral, cargo não
remunerado, mas que lhe dava ingresso livre nos teatros. Começou também a
colaborar em O Futuro,
órgão dirigido por Faustino Xavier de Novais, irmão de sua futura esposa. Seu
primeiro livro de poesias, Crisálidas, saiu em 1864. Em 1867, foi
nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial. Em agosto
de 69, morreu Faustino Xavier de Novais e, menos de três meses depois (12 de
novembro de 1869), Machado de Assis se casou com a irmã do amigo, Carolina
Augusta Xavier de Novais. Foi companheira perfeita durante 35 anos. O primeiro
romance de Machado, Ressurreição, saiu em 1872. No ano seguinte, o
escritor foi nomeado primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas, iniciando assim a carreira de burocrata
que lhe seria até o fim o meio principal de sobrevivência. Em 1874, O
Globo (jornal de Quintino Bocaiúva), em folhetins, o romance A mão e a
luva. Intensificou a colaboração em jornais e revistas, como O
Cruzeiro, A Estação, Revista Brasileira (ainda na fase
Midosi), escrevendo crônicas, contos, poesia, romances, que iam saindo em
folhetins e depois eram publicados em livros. Uma de suas peças, Tu, só tu, puro amor,
foi levada à cena no Imperial Teatro Dom Pedro II (junho de 1880), por ocasião
das festas organizadas pelo Real Gabinete Português de Leitura para comemorar o
tricentenário de Camões, e para essa celebração especialmente escrita. De 1881 a 1897, publicou na Gazeta
de Notícias as suas melhores crônicas. Em 1880, o poeta Pedro Luís Pereira
de Sousa assumiu o cargo de ministro interino da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas e convidou Machado de Assis para seu oficial de gabinete (ele já
estivera no posto, antes, no gabinete de Manuel Buarque de Macedo). Em
1881 saiu o livro que daria uma nova direção à carreira literária de
Machado de Assis - Memórias póstumas de Brás Cubas, que ele publicara
em folhetins na Revista Brasileira de 15 de março a 15 de
dezembro de 1880. Revelou-se também extraordinário contista em Papéis avulsos
(1882) e nas várias coletâneas de contos que se seguiram. Em 1889, foi
promovido a diretor da Diretoria do Comércio no Ministério em que servia.
Grande amigo de José Veríssimo, continuou
colaborando na Revista Brasileira também na fase dirigida pelo escritor
paraense. Do grupo de intelectuais que se reunia na Redação da Revista,
e principalmente de Lúcio de Mendonça, partiu a idéia da criação da Academia
Brasileira de Letras, projeto que Machado de Assis apoiou desde o início.
Comparecia às reuniões preparatórias e, no dia 28 de janeiro de 1897, quando se
instalou a Academia, foi eleito presidente da instituição, à qual ele se
devotou até o fim da vida.
A obra de Machado de Assis abrange, praticamente,
todos os gêneros literários. Na poesia, inicia com o romantismo de
Crisálidas (1864) e Falenas (1870), passando pelo Indianismo em Americanas
(1875), e o parnasianismo em Ocidentais (1901). Paralelamente,
apareciam as coletâneas de Contos fluminenses (1870) e Histórias
da meia-noite (1873); os romances Ressurreição (1872), A mão
e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878),
considerados como pertencentes ao seu período romântico. A partir daí, Machado
de Assis entrou na grande fase das obras-primas, que fogem a qualquer
denominação de escola literária e que o tornaram o escritor maior das letras
brasileiras e um dos maiores autores da literatura de língua portuguesa.
A obra de Machado de Assis foi, em vida do Autor,
editada pela Livraria Garnier, desde 1869; em 1937, W. M. Jackson, do Rio de
Janeiro, publicou as Obras completas, em 31 volumes. Raimundo
Magalhães Júnior organizou e publicou, pela Civilização Brasileira, os
seguintes volumes de Machado de Assis: Contos e crônicas (1958); Contos
esparsos (1956); Contos esquecidos (1956); Contos recolhidos
(1956); Contos avulsos (1956); Contos sem data (1956); Crônicas
de Lélio (1958); Diálogos e reflexões de um relojoeiro (1956). Em
1975, a
Comissão Machado de Assis, instituída pelo Ministério da Educação e Cultura e
encabeçada pelo presidente da Academia Brasileira de Letras, organizou e
publicou, também pela Civilização Brasileira, as Edições críticas de obras de
Machado de Assis, em 15 volumes, reunindo contos, romances e poesias desse
escritor máximo da literatura brasileira.
Referências:
http://www.machadodeassis.org.br/
http://machado.mec.gov.br/
http://www.naniesworld.com/2011/05/caricaturas-de-escritores-famosos.html
Enciclopédia Barsa
Livros na
Biblioteca: Casa velha, Cinqüenta contos de Machado de Assis, Contos, Conto
de Escola, Dom Casmurro, Iaiá Garcia, A mão e a luva, Melhores poemas, Memorial
de Aires, Memórias póstumas de Brás Cubas, Papeis avulsos,Várias Histórias.
Círculo Vicioso
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
- Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
- Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:
- Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
- Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
- Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:
- Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?
Um Apólogo
Machado de
Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
—
Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que
vale alguma cousa neste mundo?
—
Deixe-me, senhora.
—
Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar
insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
—
Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não
tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.
Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
—
Mas você é orgulhosa.
—
Decerto que sou.
—
Mas por quê?
—
É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem
é que os cose, senão eu?
—
Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os
cose sou eu e muito eu?
—
Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou
feição aos babados...
—
Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você,
que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
—
Também os batedores vão adiante do imperador.
—
Você é imperador?
—
Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante;
vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que
prendo, ligo, ajunto...
Estavam
nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto
se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não
andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da
linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam
andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os
dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor
poética. E dizia a agulha:
—
Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que
esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos
dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A
linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por
ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir
palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se
também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia
mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a
costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no
outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio
a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a
vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto
necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou
outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha
para mofar da agulha, perguntou-lhe:
—
Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo
parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e
diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para
o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece
que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor
experiência, murmurou à pobre agulha:
—
Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar
da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro
caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei
esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
—
Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.
A Cartomante
Machado de Assis
Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
—
Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que
fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse
o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de
uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas,
combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse,
mas que não era verdade...
—
Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
—
Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa.
Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo
pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito,
que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum
receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que
era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
—
Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
—
Onde é a casa?
—
Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.
Descansa; eu não sou maluca.
Camilo
riu outra vez:
—
Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi
então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia
muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é
que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido
que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também
ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de
crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que
deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele,
como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e
logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não
poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo
mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante
do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se
contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não
só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes,
e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A
casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana
de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde
residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da
cartomante.
Vilela,
Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens.
Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a
carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do
pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada,
até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou
Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a
magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os
lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
—
É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é
seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo
e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou
de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido.
Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e
interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela
vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o
parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e
prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a
natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem
intuição.
Uniram-se
os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e
nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela
cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do
coração, e ninguém o faria melhor.
Como
daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar
as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas
principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele
aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos
livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez
e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal.
Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que
procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as
mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela
uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar
cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não
conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há
vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em
que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o
carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo
quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e
pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,
remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória
delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí
foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas
e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam
ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as
mesmas.
Um
dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido,
e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar
as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as
ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma
intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia
do ato.
Foi
por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para
consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a
cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito
o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três
cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras
palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem
por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela,
e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
—
Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas
que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma
apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando
pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso
deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o
marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio
particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a
suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas
semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e
separaram-se com lágrimas.
No
dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela:
"Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de
meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural
chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra,
fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas
cousas com a notícia da véspera.
—
Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os
olhos no papel.
Imaginariamente,
viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela
indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e
esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo,
e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho,
lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse
tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem
descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia
anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela
conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente,
apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo
ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam
decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, —
eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à
nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro,
tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma
hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se
iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a
cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a
precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia,
picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi.
Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
—
Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas
o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não
tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o
tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra.
Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos,
reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante,
a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas.
Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e
pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente
Destino.
Camilo
reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de
outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe
voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que
esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo:
era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com
vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no
cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros
concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
—
Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí
a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em
outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da
carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A
casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se
diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas
cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma
frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu
e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu
por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido
enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos
pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não
aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade
fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas,
três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia
consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior
que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma
janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias,
um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A
cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as
costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no
rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e
enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a
mesa, e disse-lhe:
—
Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo,
maravilhado, fez um gesto afirmativo.
—
E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
—
A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A
cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as
cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a
estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
—
As cartas dizem-me...
Camilo
inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não
tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro,
ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e
despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava
deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
—
A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima
da mesa e apertando a da cartomante.
Esta
levantou-se, rindo.
—
Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E
de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se
fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda,
sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a
despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as
unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso
por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
—
Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
—
Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo
tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O
preço usual era dois mil-réis.
—
Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor.
Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A
cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando,
com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que
levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava
livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo
lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava
límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris;
recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e
familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram
urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e
gravíssimo.
—
Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E
consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que
formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga
assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da
cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se
ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do
rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro.
Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas,
as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no
fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os
elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A
verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de
outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o
mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço
infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí
a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim
e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve
tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
—
Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela
não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para
uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao
fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela
gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
Este conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente foi incluído no livro "Várias Histórias" e em "Contos: Uma Antologia", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, de onde foi extraído.
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