Dona Custódia
Trailler de: DONA
CUSTÓDIA
Brasil
- curta-metragem
2007 – cor – 13’22’’
Direção: Adriana Andrade
Roteiro: Adriana Andrade –
adaptação do conto homônimo de Fernando Sabino
Elenco: Dina Brandão
Dimer Monteiro
Bidô Galvão
Tereza Rolemberg
Valéria Cabral
Elisete Teixeira
Gênero: comédia
Sinopse: um escritor solitário e ensimesmado,
acostumado com sua rotina e com o caos criativo que impera em sua casa vê tudo
ser alterado a partir da presença da sua nova empregada que tenta ordenar e
organizar aquele espaço.
Observações:
1 – Prêmios: Prêmio ABCV 2007, no 40° Festival
de Brasília do Cinema Brasileiro; Melhor Ator e Diretora Revelação , no 15º
Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, em 2008; Prêmio Especial do Júri do 12°
Brazilian Film Festival of Miami, em 2008.
Dona Custódia
Fernando Sabino
Ar de empregada
ela não tinha: era uma velha mirrada, muito bem arranjadinha, mangas compridas,
cabelos em bandó num vago ar de camafeu – e usava mesmo um, fechando-lhe o
vestido ao pescoço. Mas via-se que era humilde – atendera ao anúncio publicado
no jornal porque satisfazia às especificações, conforme ela própria fez questão
de dizer: sabia cozinhar, arrumar a casa e servir com eficiência a senhor só.
O “senhor só”
fê-la entrar, meio ressabiado. Não era propriamente o que esperava, mas tanto
melhor: a velhinha podia muito bem dar conta do recado, por que não? E além do
mais impunha dentro de casa certo ar de discrição e respeito, propício ao seu
trabalho de escritor. Chamava-se Custódia.
Dona Custódia foi
logo botando ordem na casa: varreu a sala, arrumou o quarto, limpou a cozinha,
preparou o jantar. Deslizava como uma sombra para lá, para cá – em pouco
sobejavam provas de sua eficiência doméstica. Ao fim de alguns ele se acostumou
à sua silenciosa iniciativa (fazia de vez em quando uns quitutes) e se deu por
satisfeito: chegou mesmo a pensar em aumentar-lhe o ordenado, sob a feliz
impressão de que se tratava de uma empregada de categoria.
De tanta categoria
que no dia do aniversário do pai, em que almoçaria fora, ele aproveitou-se para
dispensar também o jantar, só para lhe proporcionar o dia inteiro de folga.
Dona Custódia ficou muito satisfeitinha, disse que assim sendo iria também
passar o dia com uns parentes lá no Rio Comprido.
Mas às quatro
horas da tarde ele precisou de dar um pulo ao apartamento para apanhar qualquer
coisa que não vem à história. A história se restringe à impressão estranha que
teve, então, ao abrir a porta e entrar na sala: julgou mesmo ter errado de
andar e invadido a casa alheia. Porque aconteceu que deu os móveis da sala
dispostos de maneira diferente, tudo muito arranjadinho e limpo, mas cheio de
enfeites mimosos: paninho de renda no consolo, toalha bordada na mesa, dois
bibelôs sobre a cristaleira – e em lugar da gravura impressionista na parede,
que se via? Um velho de bigodes o espiava para além do tempo, dentro da moldura
oval. Nem pôde examinar direito tudo isso, porque, espalhadas pela sala, muito
formalizadas e de chapéu, oito ou dez senhoras tomavam chá! Só então reconheceu
entre elas D. Custódia que antes proseava muito à vontade mas ao vê-lo se
calou, estatelada. Estupefato, ele ficou parado sem saber o que fazer e já ia
dando o fora quando sua empregada se recompôs do susto e acorreu, pressurosa:
– Entre, não faça
cerimônia! – puxou-o pelo braço, voltando-se para as demais velhinhas: – Este é
o moço que eu falava, a quem alugo um quarto.
Foi apresentado a
uma por uma: viúva do Desembargador Fulano de Tal; senhora Assim-Assim; senhora
Assim-Assado; viúva de Beltrano, aquele escritor da Academia! Depois de
estender a mão a todas elas, sentou-se na ponta de uma cadeira, sem saber o que
dizer. Dona custódia veio em sua salvação:
– Aceita um
chazinho?
– Não, muito
obrigado. Eu...
– Deixa de
cerimônia. Olha aqui, experimenta uma brevidade, que o senhor gosta tanto. Eu
mesma fiz.
Que ela mesma
fizera ele sabia – não haveria também de pretender que ele é que cozinhava. Que
diabo ela fizera de seu quadro? E os livros, seus cachimbos, o nu de Modigliani
junto à porta substituído por uma aquarelinha...
– A senhora vai me
dar licença, Dona Custódia.
Foi ao quarto –
tudo sobre a cama, nas cadeiras, na cômoda. Apanhou o tal objeto que buscava e
voltou à sala:
– Muito prazer,
muito prazer – despediu-se, balançando a cabeça e caminhando de costas como um
chinês. Ganhou a porta e saiu.
Quando regressou,
tarde da noite, encontrou como por encanto o apartamento restituído à arrumação
original, que o fazia seu. O velho bigodudo desaparecera, o paninho de renda,
tudo – e os objetos familiares haviam retornado ao seu lugar.
– A senhora...
Dona Custódia o
aguardava, ereta como uma estátua, plantada no meio da sala. Ao vê-lo, abriu os
braços dramaticamente, falou apenas:
–Eu sou a pobreza
envergonhada!
Não precisou dizer
mais nada: ao olhá-la, ele reconheceu logo que era ela: a própria Pobreza
Envergonhada. E a tal certeza nem seria preciso acrescentar-se as explicações,
a aflição, as lágrimas com que a pobre se desculpava, envergonhadíssima:
perdera o marido, passava necessidade, não tinha outro remédio – escondida das
amigas se fizera empregada doméstica! E aquela tinha sido a oportunidade de
reaparecer para elas, justificar o sumiço... Ele balançava a cabeça,
concordando: não se afligisse, estava tudo bem. Concordava mesmo que de vez em
quando, ele não estando em casa, evidentemente, voltasse a recebê-las como na
véspera para um chazinho.
O que passou a
acontecer dali por diante, sem mais incidentes. E às vezes se acaso regressava
mais cedo, detinha-se na sala para bater um papo com as velhinhas, a quem já se
ia afeiçoando.
Não tão velhinhas que um dia não surgisse uma viúva
bem mais conservada, a quem acabou também se afeiçoando, mas de maneira
especial. Até que Dona Custódia soube, descobriu tudo, ficou escandalizada! Não
admitia que uma amiga fizesse aquilo com seu hóspede. E despediu-se, foi-se
embora para nunca mais.
Referência: Sabino, Fernando. Dona Custódia. In: Histórias Divertidas. São
Paulo: Ática, 2011. (Para Gostar de Ler, 13).
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