GALINHA AO MOLHO PARDO
GALINHA AO
MOLHO PARDO
Brasil – curta-metragem
2008 – cor – 13’
Direção:
Feliciano Machado Coelho
Roteiro:
Feliciano Machado Coelho e Javier Galindo – baseado no conto do mesmo nome que
integra o livro “O Menino no Espelho”, de Fernando Sabino.
Elenco:
Matheus Rodrigues Gonçalves
Aruana
Maria da Conceição da Silva
Ana
Luísa Alves
Jefferson
da Fonseca Coutinho
Almir
Lima
Mário
César Camargo (narração)
Aggeo
Simões (voz do papagaio)
Sinopse:
Um menino (Fernando), ao saber que a galinha por quem nutria grande afeto seria
sacrificada para ser preparada para o almoço de domingo, tenta fazer de tudo
para evitar esta tragédia.
GALINHA AO MOLHO PARDO
Fernando Sabino
AO CHEGAR da escola, dei com a novidade: uma
galinha no quintal.
O quintal de nossa casa era grande, mas não
tinha galinheiro, como quase toda casa de Belo Horizonte naquele tempo. Tinha
era uma porção de árvores: um pé de manga sapatinho, outro de manga
coração-de-boi, um pé de gabiroba, um de goiaba branca, outro de goiaba
vermelha, um pé de abacate e até um pé de fruta-de-conde. No fundo, junto do
muro, um bambuzal. De um lado, o barracão com o quarto da Alzira cozinheira e
um quartinho de despejo. Do outro lado, uma caixa de madeira grande como um
canteiro, cheia de areia que papai botou lá para nós brincarmos. Eu brincava de
fazer túnel, de guerra com soldadinhos de chumbo, trincheira e tudo. Deixei de
brincar ali quando começaram a aparecer na areia uns montinhos fedorentos de
cocô de gato. Os gatos quase nunca apareciam, a não ser de noite, quando a
gente estava dormindo. De dia se escondiam pelos telhados. Tinham medo de
Hindemburgo, que era mesmo de meter medo, um pastor alemão deste tamanhão. Não
sabiam que Hindemburgo é que tinha medo deles. Cachorro com medo de gato: coisa
que nunca se viu. Quando via um gato, Hindemburgo metia o rabo entre as pernas
e fugia correndo.
Pois foi no quintal que eu vi a galinha, toda
folgada, ciscando na caixa de areia. Havia sido comprada por minha mãe para o
almoço de domingo:
Dr. Junqueira ia almoçar em casa e ela
resolveu fazer galinha ao molho pardo.
Eu já tinha visto a Alzira matar galinha, uma
coisa horrível. Agarrava a coitada pelo pescoço, agachava, apertava o corpo
dela entre os joelhos, torcia com a mão esquerda a cabecinha assim para um
lado, e com a direita, zapt! passava o facão afiado, abrindo um talho no gogó.
O sangue esguichava longe. Ela aparava logo o esguicho com uma bacia, deixando
que escorresse ali dentro até acabar. E a bichinha ainda viva, estrebuchando nas
mãos da malvada.
Como se fosse a coisa mais natural deste
mundo, a Alzira me contou o que ia acontecer com a nova galinha.
Revoltado, resolvi salvá-la.
Eu sabia que o Dr. Junqueira era importante,
meu pai dependia dele para uns negócios. Pois no que dependesse de mim, no
domingo ele ia poder comer de tudo, menos galinha ao molho pardo.
Era uma galinha branca e gorda, que não me
deu muito trabalho para pegar. Foi só correr atrás dela um pouco, ficou logo
cansada. Agachou-se no canto do muro, me olhou de lado como as galinhas olham e
se deixou apanhar.
Não sei se percebeu que eu não ia lhe fazer
mal. Pelo contrário, eu pretendia salvar a sua vida. O certo é que em poucos
minutos ficou minha amiga, não fugiu
mais de mim.
- O seu nome é Fernanda - falei então. E
joguei um pouquinho de água na cabecinha dela: - Eu te batizo em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, amém.
Assim que escureceu, ela se empoleirou muito
fagueira num galho da goiabeira, enfiou a cabeça debaixo da asa e dormiu. Então
eu entendi por que dizem que quem vai para a cama cedo dorme com as galinhas.
NO DIA seguinte era sábado, não tinha aula.
Passei o tempo inteiro brincando com ela. Levei horas lhe ensinando a responder
sim e não com a cabeça:
- Você sabe o que eles estão querendo fazer
com você, Fernanda?
Ela mexia a cabecinha para os lados, dizendo
que não.
-Pois nem queira saber. Cuidado com a Alzira,
aquela magrela de pernas compridas. É a nossa cozinheira. Ruim que só ela. Não
deixa a Alzira nem chegar perto de você.
Ela mexia com a cabecinha para cima e para
baixo, dizendo que sim.
- Estão querendo matar você para comer. Com
molho pardo.
Os olhinhos dela piscaram de susto. O corpo
estremeceu e ali mesmo, na hora, ela botou um ovo. De puro medo.
- Mas eu não vou deixar - procurei
tranquiliza-la, apanhando o ovo com cuidado, para enterrar na areia depois e
ver se nascia pinto.
E acrescentei:
- Hoje não precisa de ter medo, que o perigo
todo vai ser amanhã.
Eu sabia que para fazer galinha ao molho
pardo tinham de matar quase na hora, por causa do sangue, que era aproveitado
para preparar o molho.
- Vou esconder você num lugar que ninguém é
capaz de descobrir.
Junto do tanque de lavar roupa costumava
ficar uma bacia grande de enxaguar. A Maria lavadeira só ia voltar na
segunda-feira. Antes disso ninguém ia mexer naquela bacia. Assim que escureceu,
escondi a Fernanda debaixo dela. Fiquei com pena de deixar a coitada ali
sozinha:
- Você se importa de ficar aí debaixo até
passar o perigo?
Ela fez com a cabeça que não.
- Então fica bem quietinha e não canta nem
cacareja nem nada. Principalmente se ouvir alguém andando aqui fora.
Ela fez com a cabeça que sim.
- Amanhã, assim que puder eu volto. Dorme
bem, Fernanda.
Naquela noite, para que ninguém desconfiasse,
jantei mais cedo e fui dormir com as galinhas.
NA MANHÃ de domingo me levantei bem cedo e
fui dar uma espiada na Fernanda. Encontrei a pobrezinha mais morta do que viva
debaixo da bacia. Mais um pouco e nem ia ser preciso a Alzira usar o facão. Não
sei se por falta de ar, por causa da fome, da sede ou de tudo isto junto: ela
estava deitada de bico aberto e os olhos meio fechados de quem já desistiu de
viver.
Água era fácil, eu trouxe um pouco numa
tigelinha, despejei pelo bico adentro e ela se reanimou.
Mas como arranjar comida sem chamar a atenção
de ninguém? Ainda não tinham notado a falta da galinha, nem mesmo pensado em
trazer alguma coisa para ela comer. Que diferença fazia? Se ia ser comida
naquele dia mesmo?
O jeito foi furtar um pouco do milho do
Godofredo, que no seu poleiro, correntinha presa no pé, acompanhava tudo com ar
intrigado. A galinha come milho e o papagaio leva a fama! - ele parecia dizer.
No que tirei o milho, disparou a berrar:
- Socorro! Socorro! Pega ladrão!
O diabo do papagaio não gostava de mim eu
sabia. Era do Toninho, meu irmão, a quem dava o pé, todo lampeiro, e ainda
abaixava a cabecinha para um cafuné. Ai de mim, se quisesse fazer o mesmo: me
pespegava uma bicada na mão.
- Cala a boca, Godofredo.
- Cala a boca já morreu! Quem manda aqui sou
eu!
Joguei na cara dele o resto da água da
tigelinha:
- Toma, seu desgraçado, para você aprender.
- Socorro! Socorro! Pega ladrão! - berrava
ele, batendo as asas.
Tamanho foi o escarcéu que o Godofredo
aprontou, que acabou caindo do poleiro e ficou dependurado pelo pé. Foi o tempo
de esconder a Fernanda debaixo da bacia e me escafeder correndo pelo porão
adentro. A Alzira já batia os chinelos escada abaixo com suas pernas compridas,
faca na mão, à procura da galinha. Ao ouvir aquele berreiro, veio ver o que
estava acontecendo:
- Que é que esse bicho tem? Não fala nada que
preste e de repente destampa essa gritaria toda!
O papagaio tentava com muito esforço voltar
ao poleiro, subindo com a ajuda do bico pela própria correntinha e se
balançando de um lado para outro. Olhava com raiva para a cozinheira, como a
dizer: essa miserável nem para me dar uma mãozinha. Ela também não achava lá
muita graça no Godofredo. Dizia que ele não servia para nada, só sabia sujar de
titica o chão todo debaixo do poleiro, e ela é que tinha de limpar.
- Que é que você quer, coisa ruim? Quem é que
é ladrão?
O bicho tinha conseguido com muita
dificuldade empoleirar-se de novo, depois de despencar algumas vezes.
Ofegante, entortou a cabecinha e encarou a
cozinheira:
-
Sua galinha! Sua galinha!
O
Godofredo já havia xingado a Alzira de nomes feios, de modo que ela achou
desaforo ser chamada de galinha. E respondeu no mesmo tom, brandindo o facão
para o papagaio.
- Galinha é você! Galinha verde!
Lá do fundo escuro do porão, onde tinha ido
me esconder, vi a Alzira olhar ao redor:
- Por falar nisso, onde é que se meteu a
galinha?
Apavorado, ouvi o Godofredo gritar, com sua
voz de currupaco-papaco:
- Na bacia! Na bacia!
Além de tudo, era delator, o miserável!
Dedo-duro, traidor, entregava ao carrasco o seu próprio semelhante (ou quase).
Antes que fosse tarde, saí do meu esconderijo lá no porão, como quem não quer
nada, vim me sentar na própria bacia.
- Uai, que é que você estava fazendo ali
escondido, Fernando?
- Nada não...
A cozinheira me olhava com ar de suspeita:
- Boa coisa é que não há de ser. Alguma esse
menino está arrumando, com esse ar de cachorro que quebrou a panela.
- Na bacia! Na bacia! – o Godofredo berrava.
- Cala essa boca, seu filhote de urubu! –
gritei.
- Na bacia! Na bacia! – ele continuava.
- Que é que esse tagarela está falando? -
perguntou a Alzira.
- Está te chamando de nabacinha.
- Nabacinha? Que quer dizer isso?
- Quer dizer vagabunda - respondi, a cara
mais séria deste mundo.
A Alzira arregalou os olhos, ergueu no ar o
facão:
- Vagabunda? Está me chamando de vagabunda?
Nabacinho é você, seu bicho ordinário! Não sei onde estou que não te corto o
pescoço, asso no espeto e como, ouviu? E ainda chupo os ossinhos um por um!
Ela correu de novo os olhos em torno:
- Por falar em comer: quéde a galinha? Já
está na hora de fazer o almoço. Onde é que ela se meteu?
- Não sei...
- Você não estava brincando com ela ontem,
menino?
- Isso foi ontem. Hoje eu não vi ela ainda.
- Será que fugiu? Ou alguém roubou?
E ela olhou para o papagaio, cismada agora
com o silêncio dele:
- Vai ver que é por isso que esse nabacinho
de uma figa estava gritando pega ladrão. Algum ladrão de galinha.
Agarrei a ideia no ar, era a salvação:
- Isso mesmo! Quando eu estava ali no quintal
vi um homem passar correndo... Levava uma coisa escondida embaixo do paletó. Só
podia ser a galinha.
A Alzira não parecia acreditar muito na
história. Pelo contrário, ficou mais desconfiada. E naquele exato momento a
Fernanda resolve se mexer debaixo da bacia, fazendo um barulhinho na lata com o
bico e com os pés. Continuei sentado e, para disfarçar, comecei a bater com os
dedos na bacia como se tocasse tambor. A galinha deve ter entendido, pois logo
ficou quieta. Mas a Alzira continuava com ar de desconfiança:
- Esse menino está com um jeito muito
velhaco. Sei não ... Alguma ele andou fazendo.
E saiu pelo quintal, à procura da galinha,
olhando aqui e ali: nos galhos das árvores, atrás do barracão, no meio dos
bambus. Depois foi contar para mamãe que a galinha havia sumido.
Fui atrás, para o que desse e viesse. Escutei
tudo. Mamãe torcia as mãos: .
- E agora, como vai ser? Como é que ela foi
sumir assim, sem mais nem menos?
- Sei lá - respondeu a Alzira: - Não acredito
que tenham roubado, como diz o Fernando. Vai ver que saiu voando e pulou o
muro. Bem que eu pensei em cortar as asas dela e me esqueci. Agora é tarde.
E a cozinheira me apontou:
- Para mim, a gente anda precisando de cortar
as asas é desse menino.
- Está quase na hora do almoço - disse minha
mãe: - O Dr. Junqueira está para chegar de uma hora para outra, e como é que a
gente vai fazer sem a galinha? O Domingos vai ficar aborrecido.
Dali a pouco era o meu pai quem chegava da
rua, trazendo o jornal de domingo debaixo do braço. Quando mamãe lhe deu a
triste notícia, para surpresa minha e dela, ele não se aborreceu:
- Faz outra coisa. Macarrão, por exemplo. O
Dr. Junqueira é bem capaz de gostar de macarrão.
E foi ler o jornal na varanda.
Filho de italiano, quem gostava de macarrão
era ele. E da macarronada que a Alzira fazia todo mundo gostava.
Pois o Dr. Junqueira não só gostou, como
repetiu duas vezes, para grande satisfação de mamãe. Papai abriu uma garrafa de
vinho daquelas de cestinha de palha, e os dois a esvaziaram, depois de dar um
pouquinho para mim e meus irmãos, com água e açúcar. Guardanapo enfiado no
colarinho, o Dr. Junqueira limpou os bigodes, satisfeito:
- Ainda bem que era
essa macarronada tão boa. Eu estava com medo que fosse galinha. Se tem uma
coisa que eu detesto é galinha. Principalmente ao molho pardo.
NEM POR ISSO senti que minha amiga Fernanda
não estava mais condenada à morte. Mesmo porque, meu pai gostava também de
galinha, com ou sem o Dr. Junqueira. Por outro lado, ela não podia ficar
escondida o resto da vida (eu não tinha a menor ideia de quanto tempo vivia uma
galinha). E na manhã seguinte a Maria viria lavar roupa, ia descobrir a
Fernanda encolhida debaixo da bacia.
Depois que o almoço terminou e o Dr.
Junqueira se despediu, fui lá perto do tanque fazer uma visitinha a ela,
resolvido a ganhar tempo:
- Você hoje ainda vai dormir ai, mas amanhã
eu te solto, está bem?
Ela fez que sim com a cabeça. Deixei água na
tigelinha e mais um pouco de milho furtado de novo do Godofredo. Antes que o
diabo do papagaio pusesse a boca no mundo eu avisei:
- Se você falar alguma coisa, mando a Alzira
fazer papagaio ao molho pardo para o jantar.
Ele fez cara de quem comeu e não gostou; mas
ficou calado, vai ver que pensando um jeito de se vingar.
De manhãzinha, antes que a Maria lavadeira
chegasse, fui até lá, levantei a bacia e peguei a Fernanda, procurei mamãe com
ela debaixo do braço:
- Olha só quem está aqui. Mamãe se espantou:
- Vai, ela não tinha sumido? Onde é que você
encontrou essa galinha, Fernando?
De repente seus olhos se apertaram num jeito
muito dela, quando entendia as coisas: havia entendido tudo. Antes que me
passasse um pito, eu avisei:
- Se tiverem de matar a minha amiga, me matem
primeiro.
Mamãe achou graça quando soube que ela se
chamava Fernanda e resolveu não se importar com o que eu tinha feito, pelo
contrário: deixou que a galinha passasse a ser um de meus brinquedos. Só
proibiu que eu a levasse para dentro de casa. Fernanda me seguia os passos por
toda parte, como um cachorrinho.
E ela continuou minha amiga, até morrer de
velha, não sei quanto tempo mais tarde.
Só sei que alguns dias depois do almoço do
Dr. Junqueira, mamãe comprou um frango.
- Esse vai se chamar Alberto - eu disse logo.
- Pois sim – disse minha mãe , e
mandou que Alzira tomasse conta do frango.
No dia seguinte mesmo, no almoço, comemos o
Alberto. Ao molho pardo.
Referência:
Sabino, Fernando. Galinha ao molho pardo. In: Sabino, Fernando. O menino no
espelho. São Paulo: Record, 1989 .
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